fonte: Faperj
A pandemia causada pelo novo coronavírus impôs mudanças à rotina de toda a população, gerando uma onda de distúrbios psicológicos associados ao estresse, como depressão e ansiedade. No mês de março, cerca de 2,6 bilhões de pessoas em todo o mundo entraram em quarentena — o equivalente a aproximadamente um terço da população global. Até o momento, estima-se que houve 60.713 óbitos apenas no Brasil, segundo boletim divulgado pelo Ministério da Saúde nesta quarta-feira, 1º de julho, fora os casos subnotificados. Para os profissionais da área de Saúde, que estão na linha de frente do combate à Covid-19, os impactos psicológicos podem ser ainda mais graves. Com o objetivo de analisar a ocorrência e predisposição desse grupo a desenvolver o transtorno de estresse pós-traumático, um grupo de pesquisa multidisciplinar coordenado pelas neurocientistas Leticia Oliveira e Mirtes Pereira, ambas da Universidade Federal Fluminense (UFF), está avaliando a saúde mental dos trabalhadores de hospitais e Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) de todo o País, no projeto PSIcovidA (www.psicovida.org).
O contexto atual é especialmente difícil para os profissionais que lidam diretamente com a doença em ambiente hospitalar. “O testemunho de diversas mortes em um curto espaço de tempo, a dificuldade de acesso a Equipamentos para Proteção Individual (EPIs), o medo de contaminação pelo vírus e de sua transmissão aos familiares, o isolamento e o trabalho exaustivo fazem com que a saúde mental destes profissionais possa ser abalada de maneira grave e definitiva”, contextualiza Leticia. “Esse projeto de pesquisa propõe investigar, inicialmente por meio de um questionário disponível no site do projeto, a saúde mental dos profissionais que trabalham no ambiente hospitalar e nas UPAs, desde médicos, enfermeiros e técnicos, incluindo outras categorias, como recepcionistas e prestadores de serviço que vivem a rotina hospitalar”, acrescentou.
A partir da coleta de dados, a equipe do projeto — formada por neurocientistas, psiquiatras, epidemiologistas e psicólogos — espera gerar evidências científicas para auxiliar os gestores públicos na formulação de políticas de prevenção e acompanhamento da saúde mental dos profissionais de Saúde. “Precisamos elaborar políticas públicas que minimizem o sofrimento e reduzam o desenvolvimento de patologias graves nesse grupo de profissionais, especialmente o transtorno do estresse pós-traumático. Para isso, é importante termos um embasamento científico da situação”, justificou Mirtes, que coordena junto com as professoras Leticia e Isabel David o Laboratório de Neurofisiologia do Comportamento (Labnec), do Instituto Biomédico da UFF. As três pesquisadoras receberam apoio da FAPERJ para a realização de suas pesquisas por meio do programa Cientista do Nosso Estado.
O trabalho envolve uma colaboração entre pesquisadores da UFF, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Antes da pandemia, o grupo já vinha há alguns anos trabalhando com a investigação dos sintomas do transtorno do estresse pós-traumático em decorrência de outras circunstâncias, como a violência urbana. “Esse transtorno pode ter como comorbidade a depressão, mas ele é diferente. Trata-se de uma doença psiquiátrica considerada uma sequela importante em pessoas expostas a situações de risco de vida, violência física ou sexual”, explicou o psiquiatra William Berger, coordenador na Pós-graduação em Psiquiatria e Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da UFRJ (Ipub).
De acordo com Berger, o transtorno do estresse pós-traumático tem quatro grupos de sintomas: a Revivência (a pessoa tem flashbacks da situação que gerou trauma); o Comportamento evitativo (o paciente não consegue voltar ao local onde ocorreu a situação em questão e, no caso do profissional de saúde que sofre dessa doença durante a pandemia, ele não consegue voltar ao hospital, apresentando sintomas físicos como tremores e angústia quando se aproxima do local de trabalho); as Cognições negativas (são o sentimento de culpa pelo fato ocorrido e, no caso, o profissional de Saúde se culpa porque perdeu um paciente com Covid-19); e a Hiperexcitabilidade (episódios de raiva intensa, preocupação, insônia, dificuldade de concentração e hipervigilância, nos quais a pessoa apresenta uma resposta de sobressalto exagerada, tem sintomas de noradrenalina no corpo o tempo todo, como se estivesse sempre reagindo a uma situação de perigo).
Leticia explica que nem todas as pessoas submetidas a situações traumáticas vão desenvolver esse transtorno, mas que é importante conhecer os fatores que favorecem o seu desenvolvimento e também os fatores que podem contribuir para que elas não desenvolvam essa doença psiquiátrica. “Sabemos que, entre as pessoas que passam por situações de trauma, cerca de 10% desenvolve esse transtorno. A pesquisa vai ajudar a entendermos, dentro da realidade dos profissionais de Saúde, qual a média daqueles que a desenvolvem e que fatores geram mais vulnerabilidade ou não. Como o isolamento social, vivido mais intensamente pelos profissionais de Saúde, que já trabalham em longas escalas de plantão, por exemplo, pode ser uma variável que se relaciona ao desenvolvimento do transtorno? Ou ainda, as pessoas que apresentam imobilidade tônica, ou seja, que ficam com o corpo literalmente paralisado, sem ação, diante de uma situação de risco, têm mais propensão a desenvolver o transtorno? Verificaremos essas e outras variáveis”, detalhou.
Um dado que reforça a importância do estudo é a experiência chinesa durante a pandemia. “Em diversos estudos publicados por pesquisadores chineses, divulgou-se que 70% dos profissionais de Saúde em atividade na China durante a pandemia apresentaram sintomas compatíveis aos do transtorno de estresse pós-traumático. No Brasil, ainda não temos conhecimento dessa estatística”, justificou Berger. “Estamos passando por uma situação nova na história da humanidade. Mesmo após o fim da pandemia de coronavírus, ainda teremos uma epidemia paralela de doenças mentais, não só pela insegurança de adquirir a doença, mas pela perda de amigos, familiares e efeitos da quarentena. Essa pesquisa vai gerar indicadores de como isso está afetando a população que lida diretamente com pacientes com Covid-19 e que medidas devem ser tomadas de saúde pública, suporte farmacológico e atendimento psicoterápico, agindo também de maneira preventiva”, completou Mirtes.
O projeto é tema da tese de doutorado em desenvolvimento por Camila Gama, orientanda de Leticia e Mirtes na UFF. Também participam do grupo: o psiquiatra Mauro Mendlowicz, professor da UFF; a professora Eliane Volchan, chefe do Laboratório de Neurobiologia do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ (IBCCF) e membro do Laboratório Integrado de Pesquisa do Estresse (Linpes/UFRJ) do Instituto de Psiquiatria da UFRJ (Ipub); o professor Ivan Figueira, da Faculdade de Medicina da UFRJ; a médica Mariana da Luz, assistente e preceptora da residência médica da UFRJ; a médica psiquiatra Liliane Vilete, da UFRJ; Fátima Erthal, coordenadora do Programa de Neurobiologia do IBCCF/UFRJ; a professora Izabela Mocaiber, da UFF, campus Rio das Ostras; a professora Gabriela Souza, do Departamento de Ciências Biológicas na Ufop; a professora Roberta Benitez, da UniRio; Liana Portugal, bolsista pelo programa de pós-graduação em Ciências Biomédicas (Fisiologia/Farmacologia) e Honorary Research Associate na University College London; a pós-doutoranda Raquel Gonçalves, do Laboratório de Neurofisiologia do Comportamento da UFF; a psicóloga Camila Gama, doutoranda do programa de pós-graduação em Neurologia e Neurociência do Hospital Universitário Antônio Pedro – Huap/UFF); a graduanda em Ciências Biológicas (Bacharelado) pela UFF Emmanuele Santos e o bolsista de Iniciação Científica Sérgio de Souza Júnior, graduando em Psicologia pela Faculdades Integradas Maria Thereza (Famath).
Pessoas que trabalham em ambiente hospitalar ou UPAs, independentemente da atividade que exerçam, e estejam interessadas em contribuir com informações para o projeto, podem preencher o formulário, disponível aqui.